A relação dos seres humanos com os animais, na literatura, são das mais diversas. O capitão Ahab caça Moby Dick, no livro de Herman Melville. A cadela Baleia tem medo e amor, raiva e servidão por Fabiano, em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Edgar Allan Poe vê um corvo entrar pela janela de seu quarto e grasnar Nevermore. Um rapaz persegue uma vaca (e seu destino) até a fazenda do Pãodolhão, no conto “Sequência”, de Guimarães Rosa. Há também Tenório, o galo, Ladino, o pardal, Nero, o cão, e outros animais no Bichos, de Miguel Torga.
Mas talvez um dos poetas mais ternos e que melhor conseguiu descrever e sentir uma relação com um gato tenha sido António Gedeão. Evocando o animal, transita por vários símbolos, a morte, a vida, o amor, a independência e a necessidade do outro. E, como se prova ao final do poema, mesmo quem não possui um gato poderá se identificar com António Gedeão.
Sem mais, vamos a ele:
POEMA DO GATO
(António Gedeão)
Quem há-de abrir a porta ao gato…
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prà rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semicerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa[1],
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente[2],
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
—
[1] carinho, afago; [2] desmanchando-se
***
O poema divide-se em cinco estrofes. A primeira e a última surgem numa forma de circularidade, começando e encerrando-se por um autoquestionamento. As três do meio aprofundam-se em três aspectos que parecem construir etapas em “zoom” do gato.
Na cena que se apresenta logo na primeira estrofe, há um jogo da trivialidade com o choque da ausência. O gato se torna um símbolo da dependência, da necessidade do dono – para lhe abrir a porta. Além disso, a preocupação do poeta se revela algo da esfera da sensibilidade, explorando uma antecipação do cuidado com um outro ser que, na eventualidade de sua ausência, sofrerá.
Mas, como é um gato, há o certo orgulho inconsciente, o lado indomável e selvagem que sempre subsiste na esfera. Por isso, a segunda estrofe revela as ações do gato que foge, apenas para poder ver a rua e senti-la. E, no momento em que se sente senhor de si, esse animal defronta-se com a porta fechada. Isso, em total contraponto à pergunta da primeira estrofe, é feito para rebater a “petulância” do gato, aqui entre aspas, pois o poeta não sente raiva ou vingança, antes pena (“pobre do gato”). Nessa relação dono-gato, feita de tensões e isolamentos, a porta funciona como esse ponto de conexão não apenas com o mundo externo, mas também de um com o outro.
À ironia suave da segunda estrofe sucede o “encontro”, como “a mulher aos braços do amante”. A descrição do gesto de carinho para o gato, vagarosamente, expressa não apenas o “êxtase ronronante” do gato, mas busca transmitir em palavras a própria sensação do deslizar por todo o corpo, atentando-se às partes mais alertas e despertas do animal: a cauda, os bigodes, os olhos, tudo entregue a esse erotismo da carícia do dono.
Na quarta estrofe, repete-se o gesto e o modo, mas há uma aproximação, passando-se do corpo para o rosto. As maxilas, os olhos, as narinas, tudo se mantém nessa entrega total ao carinho recebido. Vê-se que há um total afastamento do gato que queria fugir, que miava “com raiva desesperada”, sendo que agora apresenta-se ronronando, abraçando e dormindo.
Eis que, encerrando o poema, a pergunta do título mostra-se inusitada, uma vez que o poeta, que tanto descreveu as suas cenas com o gato, os carinhos que lhe dava e as reações, “não tem gato”. Com isso, dois elementos se revelam e se completam: 1) O poder da palavra e da literatura, que formula um ambiente totalmente imaginado e hipotético, sem compromisso efetivo com a realidade, mas que é capaz de criar no leitor uma identificação, inclusive afetiva; 2) A ternura de António Gedeão (presente em vários outros de seus poemas, como “Mãezinha”, “Poema do amor fóssil”, “Pedra Filosofal”), que estabelece a máscara de dono de gato para transmitir a preocupação, não necessariamente de abrir a porta, mas sim de conectar-se com algum ser independente, mas que necessita do afeto.
Enfim, os animais, como seres que não sabem que vão morrer, podem rolar na rua como se fosse na cama, podem celebrar a vida infinita do eterno instante. Aos homens, e aos poetas, cabe pensar, não na morte, mas nas conexões que se deixam e nas sensações que transmitiram.
E que se saiba transitar de uma a outra, como bons animais pensantes que somos…
E pronto!
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