Carlos Drummond de Andrade é um poeta que conseguiu “diluir-se” à própria cultura, fazendo com que versos e poemas seus sejam, praticamente, frases do senso comum: “No meio do caminho tinha uma pedra”, “Mundo, mundo, vasto mundo”, “E agora, José?”. Em sua capacidade de ver as coisas e transformá-las em palavras e ritmo, Drummond passeia por diversos assuntos e estilos, mantendo um estilo que une alta erudição a um tom popular. É assim que pode fazer homenagens a Luís de Camões (“História, Coração, Linguagem”), Mário de Andrade (“Mário de Andrade desce aos infernos”) ou Clarice Lispector (“Visão de Clarice”), ou então criar poemas que se conectam a datas comemorativas, como o Dia das Mães (“Para sempre”) ou o Dia dos Namorados (“Declaração de amor”).
Mas, como tentativa de visualizar o ano que passou e projetar o ano que virá, é interessante observar como este poema, publicado em A rosa do povo, em 1945, ainda possui alguns caminhos e imagens que persistem em suas significações.
Sem mais, vamos a ele:
PASSAGEM DO ANO
(Carlos Drummond de Andrade)
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
***
Nos poemas drummondianos, algo que se destaca em primeiro lugar não é a rima ou a métrica (que existem, em vários outros poemas), mas o ritmo. Nesse sentido, a leitura desse poema deve obedecer as pausas e suspensões da pontuação e não do final de cada verso.
O poema se constrói em torno de um duplo espaço: o espaço físico em que o eu-lírico, a princípio, está situado na passagem para o Ano-Novo; e o espaço reflexivo, predominante, no qual se tecem as considerações sobre esse acontecimento.
As duas primeiras estrofes estabelecem uma relação de continuidade entre si. A primeira contrapõe o “último dia do ano” com o “último dia do tempo”, a segunda acrescenta a esfera do “último dia de tudo”. No primeiro caso, desfaz-se a ideia de que o último dia do ano é o momento derradeiro de algo. O poeta mostra as novas coisas que existirão nos “outros dias” e que transmitirão o “calor da vida”. Amores a existir (bocas), ações a se desfazer (papéis), viagens e celebrações várias vão sendo elencados como elementos de preencher o tempo e desviar-se dos “uivos do lobo”, ou seja, dos avisos sobre a extinção do tempo de cada um.
Indo além, Drummond ressalta que mesmo o último dia do tempo (de cada um, de uma família, de uma cidade, do mundo) não será o dia derradeiro da existência, pois “fica sempre uma franja de vida”. Na sequência, colocam-se duplos, no sentido de evidenciar que todo elemento não é completo em si mesmo, mas necessita de um contraponto, fechando-se com a possibilidade de que, até o “último dia de tudo”, haverá “quem sabe até se Deus…”.
A terceira estrofe evidencia o interlocutor, até então indiretamente referido na primeira estrofe, com a reflexão: “mereceste viver mais um ano”, mas sem grandiosidades, pois foi somente um “presente do acaso”. Se as gerações passadas já morreram, mesmo a nossa (do poeta e do interlocutor) já conta com elementos de morte à ronda. E se há o desejo de se viver eternamente, o poeta surge como voz de aviso, que tanto relembra o memento mori (Lembra-te de que morrerás), quanto lança uma esperança para o Ano que se inicia. O copo na mão, por fim, mostra-se como símbolo dessa celebração e dessa busca simbólica da manhã a despontar.
A quarta estrofe se torna prolongamento do final da antecessora: o copo na mão é o recurso de se embriagar. E isso dá vazão a uma série de outros recursos para “transportar-se” para essa nova dimensão que é o Ano Novo: o extravasar em “dança e grito”, a bola colorida (talvez como referência à Bola da Times Square, em Nova Iorque, símbolo do início de 1º de janeiro), toda a filosofia de Kant e toda a poesia, como forma de compreender a natureza humana, enfim, qualquer recurso não “resolve” essa sensação da passagem do ano e de sobreviver a um ano que morre.
A quinta estrofe é composta de um único verso, em uma única frase direta e afirmativa: “Surge a manhã de um novo ano”. Mesmo que obedeça a uma ação de descrever, com base no caminho digressivo construído até então, tal frase acaba por adquirir uma conotação de arremate, isto é, de conclusão da visão do poeta sobre essa passagem do ano, a se constatar na estrofe seguinte.
Por fim, na última estrofe, o que se nota é que o destaque não é mais para o ano que se inicia, nem para o que se findou. Com as coisas postas em ordem para o novo ano (talvez até com uma agenda comprada para todos os novos projetos), surge essa renovação do “corpo gasto” por meio da “espuma”, talvez das ondas do mar, que sempre retornam, talvez de uma espécie de fermentação, que sugere essa transformação. Ou seja, na manhã de um novo ano, todas as energias parecem se renovar, o corpo todo se concentra e atua. E então, nessa ação praticada pelo corpo, a vida assume-se como elemento buscado, almejado, “comido”, “entupido” e “escorrendo”. No término do poema, a vida cantada pelo poeta não é, necessariamente, uma vida de luzes e alegrias, mas a vida num sentido mais brutal e selvagem, a ser conquistada. Para acrescentar mais ênfase a essa imagem, mostra-se a vida como algo “gordo, oleoso, mortal, sub-reptício”. Os dois primeiros adjetivos voltam-se para a noção de uma coisa que não se pode remover fácil e totalmente, ao passo que os dois últimos mostram a vida, também, como algo que, mesmo frágil e em permanente risco de morrer, esquiva-se, oculta-se, e sempre acaba sobrevivendo (algo já mencionado nas primeiras estrofes do poema, ou ainda na imagem da flor rompendo o asfalto, em “A flor e a náusea”).
Por certo que cada imagem criada por Drummond nesse poema abre possibilidades para interpretações diversas, mas o que importa, realmente, é sentir esse momento de passagem do ano não como o término de algo, mas como uma possibilidade de travessia para uma nova força simbólica e reflexiva.
E pronto, até o Ano que vem!
Tudo de bom e coisarada!
por Saulo Gomes Thimóteo
2 Comments
Os poemas de Drummond em “A Rosa do Povo” fazem a gente parar para pensar na época em que estamos vivendo. Mesmo a guerra tendo passado; parece que nada mudou. Ainda “escorremos feito espesso óleo” por aí; somos mãos vagando sem braços; cansados da vida e ansiando a morte. Ainda estou conhecendo a literatura de Drummond; mas logo de cara percebi que o que ele escreve é muito profundo.
A Segunda Guerra passou, mas as guerras se sucedem entre os homens, sempre. Drummond soube captar esse conflito interno, em associação aos conflitos sociais pulsantes, e cristalizar tudo isso em poesia. Ele fala do ontem, mas fala do hoje, e projeta um amanhã que, para que não seja mero reflexo dos erros anteriores, deve ser mola propulsora de mudanças, que devem partir dos leitores. Que bom que descobriu Drummond! Siga, pois há muita coisa boa a se desvendar nessas pedras do caminho…