Em política, mudam-se os tempos, mas dificilmente mudam-se as vontades… Como já se pôde ler na outra postagem de Eça de Queirós sobre os partidos políticos (disponível aqui), é interessante observar como, quase com um século e meio de distância e um oceano todo de separação, as discussões políticas sempre soam familiares.
Em 1871, a Câmara portuguesa debatia uma reforma da Carta Constitucional, ou seja, pretendia-se alterar a Constituição Portuguesa de 1826, mas, como se era de esperar, os deputados não buscavam necessariamente defender os interesses do povo, mas sim os seus próprios. E, diante dos argumentos apresentados para manterem a Carta como estava, Eça de Queirós não resiste e resolve lançar farpas contra todos eles (por certo que alguns trechos podem soar estranhos e distantes, mas outros ainda servem para fazer rir, pensar e satirizar).
Sem mais, vamos a ela:
UMA CAMPANHA ALEGRE
(Eça de Queirós)
Oito razões por que se não reformou a Carta
Agosto 1871.
A câmara conservadora defende-se! rejeita por 51 votos contra 23 a reforma da Carta! Mas como foram estranhas as declarações de alguns dos 51 conservadores! Porque (quem jamais o diria?) eles só votaram contra a reforma da Carta – por entenderem que a Carta deve ser reformada.
Somente entendem também que a reforma é inoportuna. Um homem é agarrado por dois ladrões, amarrado a uma árvore. De madrugada passam dois cavaleiros, e veem ao longe, vagamente, na neblina, o vulto. Compreende-se que discutam, no primeiro momento, se é ou não um homem que ali está em agonia: mas, desde que verificaram que é um homem, o que se dirá do seu bom senso se começarem a discutir – a oportunidade de o salvar?
A Carta contraria ou não as tendências do espírito moderno, e a opinião? Sim ou não? Só isto se pode debater. Mas confessar publicamente que sim, e votar que não – é o mesmo que declarar: – Nós entendemos que o País sofre com esta constituição, mas desejamos que ele continue a sofrer!
Ninguém dá crédito, porém, às vossas declamações, senhores! Vós o que não quereis é nenhuma reforma da Carta! O que tentais evitar é que intervenha, na vossa política, a força da opinião popular! E sabeis porquê? Porque se a democracia, mesmo sob a forma monárquica, tivesse o seu advento[1] – as vossas doces e rendosas sinecuras[2] ficariam estateladas no chão! E vós quereis ouvir Bellini em S. Carlos[3], e tomar sorvetes no Verão com sossego! Eis aí!
Ah! vós dizeis que amais o progresso. Amais o progresso que vos inventa cadeiras mais cómodas; o progresso que vos monta operetas de Offenbach[4] para acompanhar alegremente a digestão do jantar; o progresso que descobre melhores limas[5] para cortardes os calos! Esse progresso decerto o amais! Mas o que não amais é o progresso político, porque esse traria uma ordem de coisas que extinguiria os vossos ordenados, levantaria as vossas décimas sonegadas, transtornaria as vossas posições; – isto é, este progresso tirar-vos-ia os meios de poderdes gozar o outro. E aí está o que vós não quereis, amáveis bandidos!
Vinde no entanto para diante dos leitores das Farpas, com o extrato das vossas cómicas opiniões colado às costas. E já que não auxiliais o bem, ajudai a gargalhada!
O Sr. Barjona começou por dizer que o projeto da reforma lhe parecia indefinido e vago. Ora o projeto marcava muito explicitamente os títulos 3, 4, 5, 6 e 7. Pode chamar-se-lhe largo – mas indefinido… Santo Deus! se S. Exª chama à designação explícita de 5 capítulos uma coisa vaga – o que chamará então às nuvens do poente? Chamar-lhes-á soma de 5 parcelas?
E acrescenta S. Exª que não é daqueles que liga pouca importância às constituições políticas. Ainda bem! Mas que estranha revelação! Há, pois, políticos em Portugal (e só em Portugal se é só político), que não deem importância às constituições políticas? O meu criado não dá com efeito muita atenção a essa espécie, mas porque dá todos os seus cuidados a escovar o meu fato[6]. (E ainda assim não gosta do Sr. Carlos Bento, mas é uma questão puramente pessoal). Que existam porém sujeitos que tendo profissão de ser só políticos (oh farsa!) não deem atenção às constituições políticas – estranho parece, porque a verdade é que esses indivíduos não estão encarregados, como o Miguel, de escovar o meu fato.
O Sr. Silveira da Mota é mais estranho ainda! Examina, com grande critério, todas as reformas que o País precisa – e termina por dizer que em vista daquela dolorosa ladainha, o País não precisa nenhuma. O que se traduz deste modo trágico: isto está tão arruinado que já agora deixá-lo ficar assim!
O Sr. Barros e Cunha declara que todo o seu sentimento (êxtase, melancolia, doçura, amor, etc.) são pela reforma da Carta: mas que a frieza da sua cabeça não lhe permite admitir essa reforma. Como homem frio, quando raciocina, o Sr. Barros e Cunha é conservador: mas como homem de sentimento, quando cisma ao luar, quando segue o gemer da guitarra, quando escuta o rouxinol – ai! como ele então deseja a reforma da Carta!
O Sr. Adriano Machado não quer aquele projeto da reforma da Carta – porque pretende ele mesmo apresentar um. Isto entende-se. É um homem que tem ambições e a sede de um nome! Em lugar da Reforma Mendes, aspira a que os jornais da província celebrem no futuro a Reforma Adriano!
O Sr. Costa e Silva entende que a Carta é liberal e não precisa reformas; e, a tê-las, só em algum dos seus artigos, não muitos. Para este senhor a questão é de quantidade. Aí 5 ou 6 contentam-no: se fossem 3 e meio, tinha cãibras de prazer! Mas sobretudo o que ele apetece – é resolver a questão financeira! E espera que ela seja resolvida! Doce ingenuidade! Todo o mundo estava admirado de tanta inocência infantil; e perguntava-se com cuidado onde teria o Sr. Costa e Silva deixado o seu bibe[7]!
O Sr. Peixoto, depois de se ter visto singularmente enredado em grandes frases, conseguiu desentalar-se e dizer, claramente, que antes de tudo a reforma urgente consistiria em escrever bons livros! Que não basta que haja escolas! que são sobretudo indispensáveis bons livros! Faz isto desconfiar que o Sr. Peixoto supõe que o único livro que se tem escrito, depois do Génesis, é o das Proezas de Rocambole[8]! Mas o Sr. Peixoto pareceu sobretudo grande quando declarou que o povo não tem direito a mais liberdade! O Sr. Peixoto, que não é neto do conde Chambord[9], nem possui na África plantações de café, estava a fingir para a galeria que era da casa de França e grande senhor de engenhos! Pobre moço! E quando ele jurou que a verdadeira reforma, que incumbia ao parlamento, era dar ao povo livros que lhe ensinassem a natureza do seu País e a sua própria índole? Muita gente compreendeu que esta frase difícil significava que a câmara, antes da questão da fazenda, da administração, etc., se devia ocupar – em escrever compêndios[10] de geografia e tratados de moral.
E terminou assim: «Estas reformas reclamam todas as nossas forças e todo o nosso tempo; não fatiguemos aquelas, e não percamos este!» Abismemo-nos na contemplação deste período imortal, que, à parte a sua construção cómica – significa: «Não nos levantemos tarde e não comamos coisas que nos façam mal ao estômago». Se acrescentarmos a isto os banhos do mar, há todo o motivo para supor que o País está salvo!
O Sr. Pinheiro Chagas vota contra a reforma da Carta, porque é pouco experiente. Este moço justifica o seu voto – mostrando a sua pouca barba!
O Sr. Franco Frazão declara que a reforma da Carta não deve ser admitida à discussão, porque está muito calor! Este homem é grande! Este homem há-de ir longe – em havendo frio! Deixem vir Janeiro, e o País verá como o Sr. Franco reforma e organiza. Por ora, não. É este um grande princípio que passará para os repertórios, assim fixado: Janeiro, frio, geada; planta chicória e reforma a Carta!
Tal foi esta sessão, em que notáveis opiniões viram a luz do dia – e a luz do dia viu notáveis opiniões!
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[1] chegada; [2] benefícios ganhos com pouco ou nenhum trabalho; [3] Óperas do compositor Vincenzo Bellini no teatro S. Carlos, em Lisboa; [4] Jacques Offenbach, compositor de várias operetas, como Bataclan ou Robinson Crusoé; [5] instrumento de metal para aparar mãos, pés e unhas; [6] conjunto de roupas mais formais, geralmente paletó, colete e calças; [7] babador (de crianças); [8] série de livros populares do escritor francês Ponson du Terrail, que conta as histórias do personagem Rocambole, um bandido-herói, em enredos cheios de paixões, sequestros, traições, lutas, enfim, rocambolescos – que é de onde vem o termo; [9] rei da França, que foi exilado; [10] livros escolares.
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Conforme já mencionado antes, algumas sátiras e referências podem ter se perdido, mas essa crônica ainda conserva muitos sentidos e ironias em cada um dos oito deputados evocados.
O primeiro elemento que Eça ressalta é para o fato da Carta não ter sido reformada. E mais do que isso, é a denúncia da máscara política de que os deputados se valeram, dizendo que “sim”, mas votando que “não”, ou seja, para a opinião pública, para o povo, o discurso é um, porém, na prática, o que vale são os próprios interesses. Mas máscaras não se conseguem sustentar, ainda mais com farpas sendo lançadas, que declara “Ninguém dá crédito às vossas declamações, senhores!”. E, antes de satirizar as declarações, revela que descobriu os enganos e que o progresso que os deputados querem manter é o que lhe favorece, sem pensar em nada mais.
Todavia, como precisam dar uma justificativa para o voto, apelam para argumentos de outras naturezas, todos rapidamente desmontados pelo cronista, diante dos elementos concretos e expondo situações ridículas: todos acham volteios, ou fingindo que poderiam melhorar a proposta, ou afirmando que algo lhes impedia de votar (os sentimentos feridos, no caso do Barros e Cunha; a quantidade, no caso do Costa e Silva, o calor, no caso do Franco Frazão).
Enfim, todos esses políticos se transformam, pelas mãos de Eça de Queirós, em estereótipos de muito falar e disfarçar e pouco fazer e agir. E se essa crônica se publicou há exatos 146 anos, o que ela revela é como sempre se faz necessária uma análise dos discursos políticos, uma contínua leitura do que se diz e do que se faz. Além de perceber-se como, rindo e satirizando, se podem criticar e (quem sabe) modificar os costumes, pois ainda se encontram muitas dessas “notáveis opiniões” pelos corredores da política…
E pronto.
por Saulo Gomes Thimóteo
Comment
Uma ótima crônica, representa muito bem alguns de nossos “nobres” deputados brasileiros. Gostei muito do modo que Eça de Queirós descreve e expõe sua indignação perante seus deputados. Não sei o porquê, mas soa familiar à politicagem que corre solta no Brasil.