A metalinguagem, por definição, é a literatura quando se volta sobre o próprio fazer literário, isto é, quando o assunto do texto literário é o ato da escrita em si. E se temos exemplos altamente significativos como em “Procura da poesia” ou “O lutador”, de Drummond, ou ainda “A um poeta” ou “Profissão de fé”, de Olavo Bilac, há poemas em que o lado irônico de perceber-se escrevendo um poema toma a frente. É o que se pode perceber, por exemplo, nos sonetos abaixo, de dois poetas muito distantes um do outro: Gregório de Matos, poeta brasileiro barroco do século XVII, e Alexandre O’Neill, poeta português da metade do século XX.
O assunto de ambos é o mesmo: descrever o ato de construir um soneto. Da mesma forma, a intenção também se assemelha: satirizar, sendo que um se rebaixa no poema, enquanto o outro rebaixa o destinatário dos versos.
Sem mais, vamos a eles:
AO CONDE DE ERICEIRA, D. LUIZ DE MENEZES, PEDINDO LOUVORES AO POETA, NÃO LHE ACHANDO ELE PRÉSTIMO ALGUM
(Gregório de Matos)
Um soneto começo em vosso gabo[1];
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira,
na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.
Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.
Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.
—
[1] louvor
CATORZE VERSOS
(Alexandre O’Neill)
Un soneto me manda hacer Violante…
Lope de Vega
O primeiro é assim: fica de parte.
No segundo já posso prometer
que no terceiro vai haver mais arte,
Mas afinal não houve… Que fazer?
Melhor será calar, pois que dizer
nem do sexto conseguirei destarte.
Os acentos errados é favor não ver;
nem os versos errados, que também sei hacer…
Ó nono verso porque vais embora
sem que eu te sublime neste décimo?
Ao décimo-primeiro dediquei uma hora.
Errei-o. Mas que importa se a poesia,
mesmo que o não errasse, já não vinha?
É este o último e, como os outros, péssimo…
***
Talvez a mais clássica das formas fixas poéticas, o soneto tem uma estrutura de quatorze versos, divididos em quatro estrofes. Nas duas primeiras estrofes, quartetos, as rimas podem obedecer ou a um esquema interpolado (rimando-se os 1º, 4º, 5º e 8º versos, e os 2º, 3º, 6º e 7º) ou alternado (rimando-se os 1º, 3º, 6º e 8º versos, e os 2º, 4º, 5º e 7º), podendo haver alguma variação, mas sempre com esse cuidado na disposição de rimas. Nas duas últimas estrofes, tercetos, há uma maior possibilidade de variação, mas usualmente ou rimam os 9º e 10º versos, os 11º e 14º versos e os 12º e 13º, ou então os 9º, 11º e 13º versos, e os 10º, 12º e 14º versos. Além disso, a métrica deve seguir ou versos decassílabos (10 sílabas poéticas) ou dodecassílabos (12 sílabas poéticas).
Após todas essas questões estruturais (que espero não os ter cansado demais – é mais fácil fazendo do que explicando…), com relação à abordagem elaborada pelos poetas, vamos partir do soneto barroco de Gregório de Matos.
O título, como também visualizado na outra análise, disponível aqui, traz consigo uma síntese do que o poema tratará: o pedido de louvor que o Conde de Ericeira encomendou a Gregório de Matos. Pensando nele como o “Boca do Inferno”, quase se pode enxergar um sorriso de sarcasmo ao olhar para quem encomendou e, sem ter o que falar, resolveu “encher linguiça”, isto é, para além da metalinguagem, esse soneto funciona, também, como um exemplo muito elaborado da função fática da linguagem. Nela, o que importa é manter a comunicação acontecendo, mesmo sem nenhum conteúdo efetivo a dizer. Por certo que não é só isso, pois há um grande cuidado com a linguagem, mantendo os versos decassílabos e obedecendo os esquemas de rima e ritmo.
Basta notar que os dois quartetos descrevem o percurso que o poeta faz na própria escrita deles, começando no primeiro verso, e colocando em cada verso posterior o seu número correspondente, até sair “dos quartetos muito brabo”. Inclusive, o estado de espírito do poeta está longe de ser algo que demonstre um sentimento nobre de louvor, mas sim é algo elaborado por obrigação, sem qualquer vontade lírica – mas como é Gregório de Matos quem escreve, mesmo isso adquire grande carga poética. No primeiro terceto, afinal, há a menção ao “louvor” dirigido a D. Luiz de Mendes, de modo altamente satírico, pois se o poeta conseguisse gabar algo no Conde, ele próprio se eleva como Rei… E na última estrofe, como espécie de conclusão, há um duplo desabafo: tanto de ter se livrado da encomenda, quanto de ter aprendido a lição de não aceitar mais esse tipo de pedidos.
O soneto de Alexandre O’Neill, por sua vez, vai num outro sentido, pois parte de uma epígrafe do poeta espanhol Lope de Vega, do que parece também ser uma encomenda de uma senhora. No caso do soneto espanhol (disponível aqui), não há um direcionamento à figura de Violante, mas sim à descrição da ação de estar escrevendo um soneto (também perfeita, de um ponto de vista formal).
Mas há em O’Neill uma diferença fundamental: ele se enxerga elaborando um mau soneto e faz questão de frisar isso em cada verso. E se, no soneto de Gregório de Matos, cada verso possuía certa unidade (elaborando-se como uma frase), nesse faz-se uma frase que avança pelos versos, como o que acontece nos versos 2 a 4: faz-se uma antecipação do verso 3, encerrando-se no verso 4, em que a promessa de arte se frustrou. Isso também acontece nas demais estrofes (v. 5-6, v. 9-10 e v. 12-13), criando uma estrutura de tentativa e erro que se vai sucedendo.
Além disso, há vários “erros” que o poeta vai construindo e revelando, como a rima que se desvia no verso 8 (“também sei hacer”), visando a evocar o soneto de Lope de Vega da epígrafe; ou a mudança das 10 sílabas poéticas para 12, nos versos 7, 8, 11 e 14. Inclusive, há a confissão metalinguística “Ao décimo-primeiro dediquei uma hora” (v. 11), sendo logo na estrofe seguinte rebatida com o “Errei-o”, por não manter o número de sílabas poéticas…
Esses jogos verbais de poemas dessa natureza funcionam como um modo do leitor perceber como se dá o processo de construção poética. Não se pode ter a impressão de que a Musa Inspiradora vem e faz com que os poetas criem versos e mais versos. Há a necessidade de trabalho, especialmente no soneto, para que a versão final siga a forma pré-estabelecida. Se a sabedoria popular deu a expressão “A emenda saiu pior que o soneto”, é justamente por observar que, por vezes, a tentativa de arrumar ou aprimorar algo acaba por prejudicar mais o sentido do original. No caso desses poetas, o soneto não se emendou e saiu sem ter o que dizer. Exceto pelo piscar de olho que eles deixam…
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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