Em toda a literatura de Eça de Queirós há uma crítica altamente irônica contra alguma instituição. O casamento burguês, nO Primo Basílio, o clero corrompido, nO Crime do Padre Amaro, a aristocracia decaída, nOs Maias. Mas antes dos grandes romances, Eça já satirizava a sociedade, através das Farpas, um periódico que escreveu em parceria com Ramalho Ortigão.
Essas crônicas estão reunidas num volume chamado Uma campanha alegre, e, no texto abaixo, o que se sobressai a um leitor de hoje é como algumas coisas permanecem inalteradas, não importa o tempo, nem o lugar…
Sem mais, vamos a ele:
UMA CAMPANHA ALEGRE
(Eça de Queirós)
II
Maio, 1871
Há em Portugal quatro partidos: o partido Histórico, o Regenerador, o Reformista, e o Constituinte. Há ainda outros, mas anónimos, conhecidos apenas de algumas famílias. Os quatro partidos oficiais, com jornal e porta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliáveis, latindo ardentemente uns contra os outros de dentro dos seus artigos de fundo. Tem-se tentado uma pacificação, uma união. Impossível! eles só possuem de comum a lama do Chiado que todos pisam e a Arcada que a todos cobre. Quais são as irritadas divergências de princípios que os separam? – Vejamos:
O partido Regenerador é constitucional, monárquico, intimamente monárquico, e lembra nos seus jornais a necessidade da economia.
O partido Histórico é constitucional, imensamente monárquico, e prova irrefutavelmente a urgência da economia.
O partido Constituinte é constitucional, monárquico, e dá subida atenção à economia.
O partido Reformista é monárquico, é constitucional, e doidinho pela economia!
Todos quatro são católicos,
Todos quatro são centralizadores,
Todos quatro têm o mesmo afecto à ordem,
Todos quatro querem o progresso, e citam a Bélgica,
Todos quatro estimam a liberdade.
Quais são então as desinteligências? – Profundas! Assim, por exemplo, a ideia de liberdade entendem-na de diversos modos.
O partido Histórico diz gravemente que é necessário respeitar as Liberdades Públicas. O partido Regenerador nega, nega numa divergência resoluta, provando com abundância de argumentos que o que se deve respeitar são – as Públicas Liberdades.
A conflagração é manifesta!
Na acção governamental as dissensões são perpétuas. Assim o partido Histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio, é necessário pagar a religião, o exército, a centralização, a lista civil, a diplomacia… – Propõe um imposto.
«Caminhamos para uma ruína! – exclama o Presidente do Conselho. – O défice[1] cresce! O País está pobre! A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc…»
Mas então o partido Regenerador, que está na oposição, brame[2] de desespero, reúne o seu centro. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho na atitude de um homem que vê desmoronar-se a Pátria!
— Como assim! – exclamam todos – mais impostos!?
E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto! Prepara-se o xeque ao ministério Histórico… Zás! cai o ministério Histórico!
E ao outro dia, o partido Regenerador, no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos desceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu[3] mais, a moralidade pública abateu mais – mas finalmente caiu aquele ministério desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.
Abre a sessão parlamentar. O novo ministério Regenerador vai falar.
Os senhores taquígrafos[4] aparam as suas penas velozes. O telégrafo está vibrante de impaciência, para comunicar aos governadores civis e aos coronéis a regeneração da Pátria. Os senhores correios de secretaria têm os seus corcéis selados!
Porque, enfim, o ministério Regenerador vai dizer o seu programa, e todo o mundo se assoa com alegria e esperança!
— Tem a palavra o Sr. Presidente do Conselho.
— O novo presidente: «Um ministério nefasto (apoiado, apoiado! – exclama a maioria Histórica da véspera) caiu perante a reprovação do País inteiro. Porque, Senhor Presidente, o País está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. E a única maneira de nos salvarmos…»
Murmúrios. Vozes: Ouçam! ouçam!
«…É por isso que eu peço que entre já em discussão… (atenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria…) que entre em discussão – o imposto que temos a honra, etc. (apoiado! apoiado!)»
E nessa noite reúne-se o centro Histórico, ontem no ministério, hoje na oposição.
Todos estão lúgubres.
— «Meus senhores – diz o presidente, com voz cava. – O País está perdido! O ministério Regenerador ainda ontem subiu ao poder, e doze horas depois já entra pelo caminho da anarquia e da opressão propondo um imposto! Empreguemos todas as nossas forças em poupar o País a esta última desgraça! – Guerra ao imposto!…»
Não, não! com divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos!
—
[1] deficit; [2] grita; [3] perdeu a crença; [4] relatores, que escrevem os pronunciamentos da sessão
***
De início, algumas informações: 1) o Chiado é um bairro central de Lisboa, a Arcada é uma construção, com forma de arcos (logicamente), que circunda a Praça do Comércio, e S. Bento é um edifício no qual funcionava o Parlamento; 2) o sistema político português, ainda hoje, é o parlamentarismo, no qual a figura máxima é o Presidente do Conselho, ou Primeiro-Ministro, eleito pelo conjunto dos parlamentares.
Com isso, pode-se observar nessa análise clínica feita por Eça, que ele parte da frase latina do dramaturgo Juvenal: Ridendo castigat mores, ou seja, “rindo se criticam os costumes” para traçar um panorama do que é a política.
No caso ilustrado, a argumentação toda se estrutura no fato de que os partidos não têm nada que lhes diferencie, nem na essência, nem nas ações – tendo no nome a única modificação. Os exemplos, das Liberdades Públicas x Públicas Liberdades e, principalmente, das defesas e críticas ao imposto proposto, demonstram que, muito mais do que a defesa de um programa, o que os partidos produzem é uma defesa firme, quando são governo, e um ataque constante, quando são oposição. Algo que se veria claramente numa definição que circulava durante o reinado de D. Pedro II, no Brasil: “Não há nada mais conservador do que um liberal no governo, nem há nada mais liberal do que um conservador na oposição.”
Mas o que se torna a tônica do estilo de Eça é a ironia, em que aquilo que se fala contém, entretecido, um sentido segundo, facilmente compreendido a quem percebe a insinuação. Aqui, são os rompantes dramáticos que o cronista constrói, com “as faces luzindo de suor” ou a suspensão da cena para a declaração do novo ministério sobre o imposto. E isso se reproduz em todas as demais crônicas, como na construção de personagens políticos, como o Conselheiro Acácio, do Primo Basílio, ou o Pacheco – presente na carta VIII da Correspondência de Fradique Mendes. De modo que as caricaturas queirosianas se mostram grandemente cômicas, mesmo trazendo uma dose de melancolia ao leitor, quando se vê o quanto são reais e presentes…
E pronto.
por Saulo Gomes Thimóteo.
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[…] já se pôde ler na outra postagem de Eça de Queirós sobre os partidos políticos (disponível aqui), é interessante observar como, quase com um século e meio de distância e um oceano todo de […]