Neste Dia do Desassossego, 16 de novembro, aniversário de 95 anos de José Saramago, pode-se celebrar um de seus principais desassossegos: o de ser um escritor-leitor (ou um leitor-escritor) em combustão constante. Mesmo numa visão inicial, percebe-se como a evocação de outros autores fundamenta a sua escrita. Então Fernando Pessoa, Almeida Garrett, Gil Vicente e, nesse caso, Luís de Camões se tornam presenças, mesmo quando ausências.
Com Camões, seus versos e imagens se costuram nos romances, ele se mostra como personagem na peça teatral Que farei com este livro?, torna-se assunto da crônica “São asas” (publicada em Deste mundo e do outro). E, no segundo livro de poemas Provavelmente alegria (1970), José Saramago principia com um poema-homenagem. Antes da leitura, sugiro que tragam à memória o que se recordam de Luís de Camões, dos Lusíadas e da obra lírica. É um modo a mais de vê-lo no poema.
Sem mais, vamos a ele:
POEMA PARA LUÍS DE CAMÕES
(José Saramago)
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho para,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas[1] mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos[2] como sílex[3],
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes[4], repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas[5]
Ateadas nas frontes[6] como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
—
[1] caminhos estreitos; [2] que se chocam; [3] rocha de grande dureza, capaz de produzir faíscas; [4] imóveis, estendidas; [5] chamas de fogo; [6] cabeça, rosto
***
O poema evoca-se como uma busca do poeta por uma conexão com Camões. O que se vai construindo a cada frase é uma face adicional a um mosaico camoniano, espelhando-se, também, uma forma de autoconstrução. Interessante notar que a primeira estrofe se constrói em decassílabos (10 sílabas poéticas), exceto em dois (v. 4 e v. 11), que são hexassílabos (6 sílabas poéticas).
A primeira frase (v. 1 a v. 4) mostra-se como uma interlocução e um desejo. Camões se torna “amigo” e “convívio”, como forma de interagir de modo mais próximo – embora ainda com “espanto”. Mas também o poeta sente uma vontade de expressar essas “grandezas”, mesmo que pareça que o mar e o céu são pequenos demais. Pode-se evocar, inclusive, que Os Lusíadas acabam por ampliar o mar português de Vasco da Gama e mesmo o céu dos deuses mitológicos, como se se estendesse para além dos olhos.
A segunda frase (v. 5 e 6) forma-se em maneira de associações: a terra se condiciona ao caminho trilhado, o mundo se pode reduzir à representação do corpo (lembrando do antropocentrismo do Renascimento). Mas Saramago sugere, novamente, uma ampliação: não se pode parar o caminho, pois sempre haverá terra; o corpo humano se pode projetar e refletir como o mundo todo.
As demais frases dessa estrofe principiarão por um “E…”, como um recurso similar ao do começo dos Lusíadas, que vai fazendo um somatório de elementos que se vai cantar (“As armas e os barões assinalados…”, “E também as memórias gloriosas daqueles reis…”, “E aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”).
No poema de Saramago, a terceira frase (v. 7 a 11) se volta para a palavra poética e de como os caminhos da linguagem e da literatura acabam por revelar um outro mundo, um outro espaço, que seriam “as terras da alma”. Algo que acaba por ecoar em toda a obra lírica de Camões, com seus sonetos, principalmente.
A quarta frase (v. 12 a 14) expõe o componente de “desafio”, isto é, o canto de Camões como algo que impulsiona, para além dos limites, o próprio sangue português. Inclusive, porque sua voz continua impregnada da “luz” e da “memória”, fazendo com que os leitores do século XX (e trazendo também para o século XXI) também se sintam parte dessa força ainda presente nos versos.
Pode-se notar que as frases se constroem numa perspectiva crescente, começando como algo mais particular e íntimo, passando para o corpo com a terra, as palavras como caminhos mais amplos e a concentração de toda essa energia nas “correntes do sangue”. Nesse sentido, a frase seguinte principia a explosão em imagens múltiplas e que denotam um pulsar, com o poeta mostrando que também sabe das pedras que criam fogo (o sílex) e das pedras que ocultam razões (a gruta). Há um intenso componente alegórico aqui, especialmente com a associação das sombras de peixes irreais que entram buscam a “última razão” escondida.
A sexta frase (v. 21 a 29), por sua vez, exalta o componente do silêncio. Mas não de um silêncio morto, mas de um silêncio latente, das estátuas que recebem nova vida, graças aos versos. São todos os heróis cantados que, graças à pena de Camões, parecem maiores até do que suas próprias ações. E isso se estende não apenas aos heróis, mas a todos que recebem essas “labaredas”, pois os corpos levantados de todo esse povo (do qual Saramago se quer integrar) anseiam pelo instante da fusão coletiva na “lágrima comum”.
Afinal, a sétima frase (v. 29 a 30) se formula como uma conclusão. Aliando um paradoxo, do caos ordenado, para explicar como todo o universo camoniano, tão múltiplo e tão espantoso, possui a sua harmonia interna. Pode-se associar, aliás, com a descrição da Máquina do Mundo, presente no Canto Nono de Os Lusíadas.
E então, como finalização, cria-se uma segunda estrofe, em que se revela a ideia de que a intenção desse poema era dizer as grandezas todas de Camões. Eis que, nessa tentativa de dizer, Saramago acaba por já ter dito o que queria. Algo parecido com o que Marcel Proust faz na grande obra Em busca do tempo perdido, em que toda a narrativa é a história, as memórias e a preparação para escrever o livro que, ao final, é o que ele acabou de escrever.
Como se mostrasse o poder das palavras, esse poema-homenagem é a forma encontrada por Saramago de enaltecer a força que ainda se percebe nos poemas de Camões, plenamente possíveis de ainda desassossegarem todos os leitores.
Outros escritores também usaram Camões como figura de tornar “o amador na coisa amada”, ou melhor, o poeta em poema. Drummond faz isso em “História, coração, linguagem”; Manuel Bandeira tem um soneto chamado “A Camões”; Bocage tem vários sonetos em que se compara a Camões. E o próprio Saramago também tem outros poemas: “Salmo 136” (que resgata o camoniano “Babel e Sião”), “Fala do Velho do Restelo ao Astronauta” e “Epitáfio para Luís de Camões”.
Enfim, José Saramago escrevia para se desassossegar e desassossegar os seus leitores. Luís de Camões, mesmo escrevendo do século XVI, continua sendo fogo que arde, água que refresca, terra que sustenta e ar que eleva. E ambos se propõem, por meio da palavra, a apresentar novos mundos ao mundo.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
Comment
Boa noite!