Há poemas que parecem se ampliar e amplificar, quando se tornam canções. E Chico Buarque é um compositor que escreveu vários deles. Na questão musical, consegue transitar por ritmos musicais tão diversos como o blues, o choro, o baião, o rap, a marchinha e o samba. Além disso, as suas letras, algumas tão clássicas que parecem já estar entranhadas no imaginário popular (“A banda”, “Pedro pedreiro”, “Apesar de você”, “Geni e o zepelim”, “Cálice”), são jogos de linguagem altamente pensados e poéticos.
E Chico Buarque não tem idade. Se em 1966, ele ganhou o Festival da Música Popular da TV Record com “A banda” (dividiu o prêmio com “Disparada”, de Téo de Barros e Geraldo Vandré), em 2017 ele ganha o Prêmio Multishow de Canção do Ano com a música “As caravanas”. Nela, o que se precisa destacar, além dos arranjos e do beat box do funkeiro Rafael Mike, é a letra com alto sabor irônico e grande profundidade de descrição crítica.
Sem mais, vamos a ela:
AS CARAVANAS
(Chico Buarque)
É um dia de real grandeza, tudo azul,
Um mar turquesa à la Istambul
enchendo os olhos
E um sol de torrar os miolos,
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará – do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá
o comboio da Penha,
Não há barreira que retenha
esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos
do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá.
É o bicho, é o buchicho[1], é a charanga[2]
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes.
Diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré
Com negros torsos nus deixam
em polvorosa[3]
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné.
Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar
engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
—
[1] perturbação da ordem; [2] conjunto musical barulhento; [3] em grande agitação
***
A ironia, como figura de linguagem, se constrói como uma dupla significação: há um sentido primeiro, expresso, mas há também um sentido subterrâneo, semioculto, como se o autor “piscasse o olho” para que o leitor perceba a referência que ele está fazendo. No caso, ele diz sem dizer, ou melhor, ele diz com uma máscara.
Na canção, a máscara é da “gente ordeira e virtuosa”, que desde o início estão encarando o mar de Copacabana. Se inicialmente é uma belíssima imagem, inclusive evocando Istambul (capital da Turquia, de onde deriva, inclusive, o nome da cor “turquesa”), há uma ruptura, inclusive na linguagem, que se assume mais informal e com gírias, quando surgem as caravanas de pessoas dos subúrbios.
Aí se apresenta não somente o título, mas o que se poderia chamar de o foco principal da canção. São os moradores de bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro que, na visão da voz que narra/canta a história, “invadem” a Zona Sul, dos bairros ricos de Copacabana ou de Ipanema e Leblon (o Jardim de Alá sendo um parque entre os dois últimos).
As caracterizações ganham contornos mais incisivos: são os “estranhos”, inclusive vistos como “muçulmanos”, ou seja, de uma cultura diferente, e isso justificaria uma repulsa por parte da voz poética. Para além disso, há o problema da desinformação, dos boatos, expressos pelos “diz que” da terceira estrofe, ou seja, no pensamento expresso na canção, a verificação na realidade se torna desnecessária, pois já se possui o conhecimento do senso comum e do estereótipo. Por isso, o que se apresenta na terceira estrofe é tanto a violência em potencial dos suburbanos (com facões e adagas malocadas) quanto a potência violenta que demonstrariam – e ambas simbolizadas dentro das sungas e calções.
Na quarta estrofe, antes de observar-se o conteúdo, vale apontar que ela se estrutura em duas frases. A primeira, ainda remetendo aos suburbanos, orbita a questão sexual, pois os “negros torsos nus” agitam “a gente ordeira e virtuosa” – com especial atenção aos adjetivos empregados. A segunda, tendo como sujeito os moradores ofendidos pela presença dos “estranhos”, mostra-os na reação: apelando para a polícia despachar o “populacho” para longe do campo de visão. E quanto mais longe, melhor (favela, Benguela – em Angola, ou Guiné – país africano, também existindo Guiné-Bissau, onde se fala português). Enfim, o que se depreende disso é a aversão sentida pelo que é desconhecido, e a opção encontrada, para não se sentir ameaçado, é expulsar o diferente, ao invés de conviver e tentar compreendê-lo.
Há a necessidade, então, de se encontrar alguém para culpar… E o sol se revela o culpado, pois esquenta, agita, deturpa o que se vê. Por certo que é nova ironia, pois ao mesmo tempo que se culpa algo tão alheio como o sol, Chico insere a imagem das prisões superlotadas e associa intimamente com o tráfico de escravos africanos. Coisas cujos culpados não estão tão longe quanto o Sol…
Na estrofe final, há uma dupla explosão: a da voz poética mascarada, presentificada pela “gritaria” que brada que bata e mate a todos os estranhos – e que merece um momento de reflexão o significado dessa grotesca árvore genealógica proposta do medo que gera a raiva que gera a covardia; e a da voz poética sem máscara (pois, para lembrar, tudo isso é uma ironia), que se assume como “eu” e que escuta vozes e se julga enganar. Esse final tenta chamar atenção para um possível equilíbrio de interpretação, pois não pode haver “gente tão insana” que pense assim – ao menos no mundo real, excluindo-se o virtual –, nem tampouco associar-se as pessoas dos subúrbios, famílias e grupos sociais, que visitam as praias da própria cidade, a caravanas, como se fosse um fluxo migratório…
Para reler a letra da canção, em associação com a música, clique aqui.
Há muitas outras canções de Chico Buarque em que se destaca o jogo entre o que se diz e o que se sugere. A inocência de uma mãe admirando seu filho morto que roubava pessoas (“O meu guri”); a evocação do pedido de Cristo para afastar dele o cálice, sendo máscara para afastar o “cale-se” da ditadura (“Cálice”); a apresentação daquelas mulheres de Atenas, que devem ser “miradas” não como exemplos a se seguir, mas como existências a se reconhecer e resgatar (“Mulheres de Atenas”).
De modo que Chico Buarque é o tipo de escritor que se mantém atento a cada palavra usada, a cada sílaba que pode soar em harmonia com as demais, criando cadências e rimas internas. E que formula diferentes vozes líricas, conforme a mensagem que se quer transmitir: torna-se mulher, malandro, prostituta, trovador, velho, criança. Mas tão somente como elemento composicional de ficção e imaginação das suas cantigas e não como o Chico Buarque de-verdade.
E se há interpretações equivocadas, enfim, são coisas…
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
4 Comments
Prezado professor,
se me permite um adendo à sua brilhante análise, vejo em “a culpa deve ser do dol” uma referência aO Estrangeiro, de Albert Camus.
Caro professor, ótima análise!
Uma das muitas coisas interessantes dessa canção é o seu sabor do Oriente médio. Alem das óbvias, a poesia parece fazer até palavras indígenas soamrem como vagamente árabes (Arará, Irajá)…
Quando Trump fala dos fluxos migratórios da América Latina para os EUA ele usa exatamente o termo “caravanas”, palavra de origem árabe, criando uma associação entre dois grupos de estrangeiros “indesejáveis”: o latino e médio oriental. O eu-lírico da poesia de Chico vai um passo além, de modo que todos os pretos e pobres são agora (estereo)tipo muçulmano, tornando-se uma denúncia tanto local como universal, que se desloca do microcosmo do Rio de Janeiro para abarcar outros espaços e outros tempos.
A comparação dos sacos dos invasores com granadas, além de reforçar a imagem da potência reprodutiva “explosiva” também relembra aquela outra invasão de africanos, esses propriamente muçulmanos: o Emirado de Granada, na Espanha, mostrando raízes mais antigas desse conflito entre a Europa (ordeira, cristã, branca) e a África. Cada saco é uma granada mas também uma possível nova Granada; uma ameaça de conquista seja através da violência ou da miscigenação.
Um abraço
Muito boa complementação. Obrigado
Professor,
Gostaria de parabenizá-lo pela análise! Excelente! As complementações nos comentários também foram muito boas!