Como representante do Romantismo português, Almeida Garrett criaria sua literatura a partir das raízes lusitanas, como enaltecimento do povo e da cultura. É o que faz, em boa medida, recontando, à sua moda, a história de Frei Luís de Souza, criando um Auto de Gil Vicente e a peça Camões. Para além disso, em sua obra Romanceiro, ele irá recolher histórias da tradição oral portuguesa, justamente para preservá-las e fazer com que cheguem até hoje. A que se lê abaixo segue uma estrutura, em boa parte, de diálogos entre personagens (filha e pai / filho e pais). Foi inserida uma separação nos três momentos do texto, para facilitar a compreensão.
Sem mais, vamos a ele:
A DONZELA QUE VAI À GUERRA
(Almeida Garrett)
Já se apregoam as guerras
Entre a França e o Aragão:
— Ai de mim que já sou velho,
Não nas posso brigar, não!
De sete filhas que tenho,
Sem nenhuma ser varão,
Responde a filha mais velha
Com toda a resolução:
— Venham armas e cavalo
Que eu serei filho varão.
—Tendes los olhos mui vivos.
Filha, conhecer-vos-ão.
— Quando passar pela armada
Porei os olhos no chão.
—Tendes los ombros mui altos
Filha, conhecer-vos-ão.
— Venha gibão[1] apertado,
Os peitos encolherão.
—Tend’-las mãos pequeninas
Filha, conhecer-vos-ão.
— Venham já guantes[2] de ferro
E compridas ficarão.
— Tend’ los pés delicados,
Filha, conhecer-vos-ão.
— Calçarei botas e esporas,
Nunca delas sairão.
— Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração,
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.
— Convidai-o vós meu filho
Para ir convosco ao pomar,
Que, se ele mulher for,
À maçã se há-de pegar.
A donzela, por discreta,
O camoês[3] foi apanhar.
— Oh que belos camoezes
Para um homem cheirar!
Lindas maçãs para damas
Quem lhas pudera levar.
— Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração,
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.
Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco jantar,
Que, se ele mulher for,
No estrado se há-de encruzar.
A donzela por discreta,
Nos altos se foi sentar.
— Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração,
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.
— Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco feirar,
Que, se ele mulher for,
Às fitas se há-de pegar.
A donzela, por discreta,
Uma adaga foi comprar.
— Oh que bela adaga esta
Para com homens brigar!
Lindas fitas para damas:
Quem lhas pudera levar!
— Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração,
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.
— Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco nadar,
Que, se ele mulher for,
O convite há-de escusar.
A donzela, por discreta
Começou-se a desnudar…
Traz-lhe o seu pajem[4] uma carta,
Pôs-se a ler e pôs-se a chorar.
— Novas me chegam agora,
Novas de grande pesar:
De que minha mãe é morta,
Meu pai se está a finar.
Os sinos da minha terra
Os estou a ouvir dobrar
E duas irmãs que eu tenho
Daqui as oiço chorar.
Monta, monta, cavaleiro,
Se me quer acompanhar.
Chegavam a uns altos paços,
Foram-se logo apear.
— Senhor pai, trago-lhe um genro,
Se o quiser aceitar;
Foi meu capitão na guerra,
De amores me quis contar…
Se ainda me quer agora
Com meu pai há-de falar.
Sete anos andei na guerra
E fiz de filho varão.
Ninguém me conheceu nunca
Senão o meu capitão;
Conheceu-me pelos olhos,
Que por outra coisa não.
–
[1] casaco curto; [2] luva de ferro; [3] maçã de pele áspera; [4] escudeiro
***
O cenário mostra-se com as tradicionais cores medievais das rotinas de guerras entre reinos. E a figura da donzela destemida transmite essa noção de honra familiar e da necessidade do combate para defender a casa. Mas, além disso, há o outro lado das narrativas medievais que é a dinâmica do amor cortês, aqui muito mais sugerido que descrito, nas investidas do capitão para descobrir se o conde Daros (o disfarce da donzela) seria mulher ou não, uma vez que já lhe despertava uma paixão.
A cadência da história obedece uma estrutura que se vai repetindo, como um refrão, apenas com a troca de algum elemento. Nos dois grandes conflitos (as respostas da filha para cada temor do pai, as sugestões dos pais para sanar a desconfiança do filho), essa é a sequência: 1) Os olhos; 2) Os ombros; 3) As mãos; 4) Os pés. Esses elementos, todos aos pares, seguem uma trajetória descendente, indo da cabeça aos pés da moça. Outro pormenor interessante é que o recurso do disfarce, nos três últimos, é a ocultação por meio de instrumento de batalha (o gibão para apertar, as luvas de ferro e as botas para calçar). No caso dos olhos, eles ainda permanecem à mostra, mesmo que se desviem.
De modo que os olhos, na verdade, o símbolo máximo de todo o poema, em um determinado momento, devem ter se cruzado com os do capitão, fazendo com que se deflagrasse o segundo momento da história. Obedecendo a sequência de ações: 1) Ir ao pomar – atrás de maçãs; 2) Ir a um jantar – cruzaria as pernas; 3) Ir à feira – compraria fitas; 4) Ir nadar – recusaria ou…
Nota-se que toda ação conta com uma reação da donzela para manter o disfarce (sendo “discreta”, no sentido de engenhosa). Vai atrás de frutas menos delicadas, senta-se no alto para não cruzar as pernas, compra uma adaga, desdenhando os símbolos que, possivelmente, revelariam sua condição. No caso do banho, a estratégia encontrada foi revelar tudo, mas de um modo em que mantivesse o protagonismo e desviando-se de uma passividade. Por isso recebe a notícia, através de um empregado integrado no esquema, e leva o capitão para pedir a sua mão ao pai.
Todas as histórias presentes no Romanceiro, justamente por serem da tradição oral, têm essa intenção de serem declamadas – inclusive, caso algo tenha parecido confuso, tentem ler em voz alta, com outras pessoas, para também apreciarem… Caso não queiram declamar vocês, ouçam a declamação de Ariano Suassuna, outro mestre na coleta e difusão da tradição oral. E também procurem outras histórias, como “O Conde Yanno”, “A Bela Infanta”, “Princesa Magalona” e “Nau Catrineta”. Em síntese, esse movimento de Garrett é o mesmo que Câmara Cascudo fez no Brasil e os Irmãos Grimm fizeram na Alemanha.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
10 Comments
Sua difusão foi simplesmente maravilhosa, digna de si igualar ao poema.
Obrigado!
Encontrei um vídeo de Ariano Suassuna, o qual declamava essa história. Achei linda, porém, preliminarmente, não compreendi cada verso, tendo em vista a linguagem arcaica. Busquei na internet e encontrei sua exposição, muito bem explicada.
Obrigado. Eu também fui apresentado ao poema pelo vídeo do Ariano Suassuna… Literatura da melhor pelo melhor da literatura!
Obrigada por compartilhar o romance e seus comentários. Estou traduzindo-o para o inglês e não conseguia descobrir o que era um camoês… agora sei 🙂
Que beleza! Espero que a tradução dê certo. Qualquer coisa, avise!
Oba, aproveitando então, uma pergunta que me ocorreu: você sabe se esses romances populares eram cantados, ou acompanhados de música?
Porque este esquema de rimas muito repetitivas fica um pouco sem graça se for só declamado com um poema. Sei que o Cantar del Mio Cid espanhol era cantado, e também algumas baladas inglesas antigas — fiquei me perguntando se seria também o caso desses romances populares portugueses.
Acredito que o acompanhamento musical era mais comum no Trovadorismo, havendo talvez um prolongamento nos Cancioneiros de Garcia de Resende. Quem sabe se também, mas não tão garantido assim, como uma música de fundo nos saraus e festas com declamação, de autores como o Sá de Miranda e o António Ferreira? No caso dos poemas do Romanceiro, aqui pensando nas falas de Almeida Garrett sobre os Romances Cavalheirescos destinados à oralidade, as rimas que se repetem à moda de um refrão, funcionam mais como amparo de memorização aos declamadores. E ficam muito bem postas, mesmo com não cantores. Se não assistiu ainda, veja como Ariano Suassuna declama, sem necessariamente ser cantado. Para resumir a questão, com música ou sem ela, quando o declamador (ou o leitor, claro) traz à luz o contexto todo em sua grandeza, ali está a Poesia!
Obrigada pela explicação. Fui conferir a declamação de Ariano Suassuna — bonita!
E terminei a tradução para o inglês, ainda que não tenha ficado perfeitamente satisfeita com ela.
Se quiser dar-me a honra de ir lá ver como ficou, eis o link:
http://beatrizbecker.com/2020/08/28/the-maiden-who-went-to-war/
Essa linda estória cantada sobre a donzela guerreira que se veste de soldado para ir à guerra , minha avó contava para minha mãe e tias. Minha mãe cantava para embalar meu filho e eu já cantei para os meus alunos da Pré Escola num projeto que houve sobre Contação de Estórias , é um legado que vai passando de geração em geração. É uma reliquia que devemos preservar para as próximas gerações.Surreal !!!!!