Para que uma pessoa leia, ou se interesse a ler, dois movimentos precisam acontecer: o livro precisa piscar para ela, chamar-lhe a atenção, insinuar-se à janela; e o leitor precisa sorrir de volta, mandar-lhe flores, adicioná-la no whats, curti-la no insta. O livro não vai ao encontro do leitor, ele se faz de difícil, é uma dama trovadoresca inalcançável. Cabe ao leitor fazer-lhe a corte e descobrir, pouco a pouco, os seus mistérios esfíngicos. Caso contrário, o livro permanecerá lá, imóvel, fechado em si. Poderíamos, então, buscar meios para desvendar os caminhos da literatura, mostrando como esse jogo de seduções entre o autor e o leitor pode ser algo muito interessante, prazeroso e enriquecedor. E é isso que este site pretende.
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Leitor,
não nos conhecemos ainda, mas agora vamos tentar mapear seu caminho de leituras: possivelmente as pessoas que lhe apresentaram histórias foram ou sua família ou seus professores – ou ambos, num cenário ideal. E você foi crescendo num ambiente lúdico com grande imaginação (quem sabe se até com direito a Monteiro Lobato e Sítio do Pica-Pau Amarelo). Ao longo do Ensino Fundamental, quem sabe, houve professores (ou professoras, mais certamente) que mostraram como a leitura é importante, que propuseram teatros, jogos, dinâmicas envolvendo a literatura em suas diversas manifestações (contos, poemas, histórias em quadrinhos, filmes).
No Ensino Médio, parece que alguma coisa mudou, e o prazer da leitura foi substituído por um desfiar de nomes de homens velhos: Gregório de Matos, José de Alencar, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos. Você precisaria saber que O mulato foi escrito por Aluísio Azevedo, em 1881, e que marca o início do Naturalismo. E só! Nenhum envolvimento com os problemas de Raimundo ou com as dúvidas de Ana Rosa. Nem havia a necessidade de ler o livro, saboreando as frases irônicas e ágeis, bastava saber os dados técnicos e a prova poderia ser feita…
No Ensino Superior, o pouco de leitura literária que conseguiu sobreviver é atingido pela avalanche de textos teóricos e provas, e trabalhos, e relatórios, e papers, e artigos, e resenhas, e fichamentos (muitos fichamentos). Se for de algum curso da área de Letras (ou mesmo alguns das Ciências Humanas), textos de literatura aparecem com mais regularidade, mas podendo servir apenas para que se faça um trabalho, ou relatório, ou paper, ou artigo, ou resenha, ou fichamento…
Então os profissionais que se formam (inclusive os licenciandos) saem com a sua carga de conhecimentos técnicos e científicos, mas com pouca disposição para enfrentar textos mais exigentes, em especial os literários.
Sabemos que isso é uma generalização, e que ela omite exemplos preciosos. Mas o que se pode observar dessa ilustração é que, no que diz respeito aos professores, nem todos se envolvem com a leitura. E mesmo que incentivem os alunos a ler, eles próprios não usam os conselhos que dão. Sim, nem todo professor consegue, além de preparar aulas, preencher livros de presença e corrigir trabalhos, dedicar-se à leitura de textos literários. Mas é necessário que não se use continuamente a desculpa da falta de tempo para desviar-se da questão. Não tem tempo para ler A Odisseia? Comece lendo haicais de Helena Kolody. Se a saga de O tempo e o vento, do pai Erico, é algo distante, leia as crônicas do filho Luis Fernando. O que não se pode é adiar sempre o início de uma leitura.
Falamos especialmente para os professores de português, mas isso deve ser estendido a todos os demais. Um professor de matemática pode começar por ler O homem que calculava; de história, Os sertões; de ciências, O guia do mochileiro das galáxias ou os poemas de António Gedeão. Não importa o que se lê, o que importa é que se tenha a curiosidade de sempre querer encontrar outros livros, outros textos, outros autores, de outras épocas, de outros lugares.
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Para isso que estamos aqui!
Mostraremos textos de diferentes autores, e buscaremos apresentar uma interpretação (dentre as possíveis) para demonstrar como a leitura é algo em contínua expansão, que se vai somando a todas as leituras anteriores e que abre caminho para futuras associações, a serem descobertas numa nova visita ao texto. Apresentaremos a literatura em todo o seu poder de encanto e cuidado formal. Não seremos um Tinder de textos literários, pois queremos achar “matches” totalmente improváveis. Queremos, enquanto professores, que cada leitura adicionada gere outras leituras dela decorrentes.
Por isso, chamamos todos os aficcionados por ler e também todos que estão simplesmente à procura de um texto. Chamamos os acadêmicos sisudos, para que vejam que a literatura não é somente objeto de estudo, mas deve ser vista, simultaneamente, como ciência e arte. Chamamos os alunos de Ensino Médio, para que redescubram como há mais coisas na literatura do que bananas que escrevem diários, vampiros e lobisomens galãs e adolescentes se matando numa arena.
Queremos, afinal, que o leitor se sinta incomodado a buscar textos mais complexos e desafiadores. Pensemos assim: quando bebês, somos alimentados com sopas e papinhas, mas, quando crescemos, somos apresentados a comidas mais saborosas, como um yakissoba, um bacalhau com natas ou um costelão de dois fogos. Ninguém, após experimentar tais pratos, gostaria de passar a vida toda restrito a uma dieta de mingau. Da mesma forma, quem compreende as belezas textuais de um conto de Guimarães Rosa ou de Clarice Lispector, não vai se contentar em ler apenas aqueles romances de homens sem camisa e mulheres de pernas de fora na capa… (que tem seu valor, da mesma forma que, após um exercício de corrida, devemos sentar, descansar e apreciar a paisagem)
Toda leitura tem seu valor. E, se num dia come-se feijoada, no outro se toma uma canja leve. O importante é não se fechar para nenhum texto, pois em cada livro existe alguém que quis se expressar, e em cada leitura deve haver alguém que quer entender.
No fim de tudo, o que queremos mesmo é fazer ecoar a ideia da história de Sócrates (o filósofo, não o jogador): “Diante do seu carrasco, que preparava o veneno, Sócrates estava aprendendo a tocar uma música com a flauta. ‘Para que lhe servirá?”, perguntaram-lhe. ‘Para aprender essa música antes de morrer’.”.
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Texto que mostra sabedoria e experiência! Parabéns!